quinta-feira, 26 de junho de 2014

Como o STJ interpreta a regra do art. 215 do CC/2002 (presunção de veracidade da escritura pública)


Sob essa ótica, a regra do art. 215 do CC⁄02 é fruto de uma dedução, feita pelo legislador, da qual se extrai que a quitação contida em documento lavrado em notas de tabelião – fato-base – permite supor que houve o pagamento – fato presumido –, porque isso é o que ordinariamente acontece (presunção legal). Sacrifica-se, pois, o que menos acontece em favor do que mais acontece, como foi dito por Pontes de Miranda.

Na essência, a presunção legal relativa diferencia-se da absoluta, segundo a lição de Barbosa Moreira, porque "naquela o que se dispensa é apenas a prova de certo fato; nesta, dispensa-se o próprio fato em si mesmo" (Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 63-64). Em outras palavras, explica o doutrinador:

Quando a lei consagra uma presunção absoluta (...) o que na verdade faz é tornar irrelevante, para a produção de determinado efeito jurídico, a presença deste ou daquele elemento ou requisito no esquema fático. Se não existisse a presunção, seria indispensável, para que se produzisse o efeito, o concurso de x, y e z; estabelecendo uma presunção absoluta em relação a z, a lei faz depender a produção do efeito somente do concurso de x e y. (Anotações sobre o título "Da Prova" do novo Código Civil. Reflexos do novo Código no Direito Processual. Salvador: Juspodivm, 2006. p. 210-211).

Fredie Didier bem esclarece que, nas presunções absolutas, "a conclusão extraída pela lei é havida como verdade indisputável" (Curso de Direito Processual Civil. 8ª ed. v. 2. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 63), elencando como exemplos: I) a presunção de conhecimento do terceiro sobre a penhora de imóvel que fora transcrita na matrícula do bem (art. 659, §4º, do CPC); II) presunção de que um cônjuge autorizou o outro a contrair dívidas em benefício da economia doméstica (art. 1.643 do CC⁄02); III) presunção de parcialidade do juiz nas causas de impedimento (art. 134 do CPC). São fatos, à evidência, que sequer possibilitam a realização de prova em contrário.

Diferente, contudo, é o que ocorre com a presunção legal do art. 215 do CC⁄02, que implica, de um lado, a desnecessidade de se provar os fatos contidos na escritura, à luz do que dispõe o art. 334, IV, do CPC, e, de outro, a inversão do ônus da prova, em desfavor de quem, eventualmente, suscite a sua invalidade.

Íntegra do acórdão:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.438.432 - GO (2013⁄0398935-3)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : JUCELINO LIMA SOARES E OUTRO
ADVOGADO : ALEXANDRE ALENCASTRO VEIGA E OUTRO(S)
RECORRIDO : HELIO XAVIER PINTO E OUTROS
ADVOGADO : EDGAR ANTÔNIO GARCIA NEVES E OUTRO(S)
EMENTA
CIVIL E PROCESSO CIVIL. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA. QUITAÇÃO DADA EM ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. PRESUNÇÃO RELATIVA DE PAGAMENTO. ARTS. ANALISADOS: 460, CPC; 215, CC⁄02.
1. Ação declaratória de nulidade de negócio jurídico c⁄c reivindicatória, distribuída em 09⁄08⁄2007, da qual foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 28⁄11⁄2013.
2. Discute-se se o julgamento proferido pelo Tribunal de origem é extra petita, bem como se a quitação dada em escritura pública de compra e venda de imóvel gera presunção absoluta do pagamento.
3. A conclusão do Tribunal de origem – de que o negócio jurídico é anulável por vício resultante de erro e dolo – decorreu dos fatos que fundamentaram o pedido inicial, de modo que não há falar em julgamento extra petita.
4. A presunção do art. 215 do CC⁄02 implica, de um lado, a desnecessidade de se provar os fatos contidos na escritura pública, à luz do que dispõe o art. 334, IV, do CPC, e, de outro, a inversão do ônus da prova, em desfavor de quem, eventualmente, suscite a sua invalidade.
5. A quitação dada em escritura pública gera a presunção relativa do pagamento, admitindo a prova em contrário que evidencie, ao fim e ao cabo, a invalidade do instrumento em si, porque eivado de vício que o torna falso.
6. Recurso especial conhecido e desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer do recurso especial, mas lhe negar provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). ALEXANDRE ALENCASTRO VEIGA, pela parte RECORRENTE: JUCELINO LIMA SOARES. Dr(a). EDGAR ANTÔNIO GARCIA NEVES, pela parte RECORRIDA: HELIO XAVIER PINTO.
Brasília (DF), 22 de abril de 2014(Data do Julgamento)
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora
RECURSO ESPECIAL Nº 1.438.432 - GO (2013⁄0398935-3)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : JUCELINO LIMA SOARES E OUTRO
ADVOGADO : ALEXANDRE ALENCASTRO VEIGA E OUTRO(S)
RECORRIDO : HELIO XAVIER PINTO E OUTROS
ADVOGADO : EDGAR ANTÔNIO GARCIA NEVES E OUTRO(S)
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO NANCY ANDRIGHI (RELATOR):
Cuida-se de recurso especial interposto por JUCELINO LIMA SOARES e KATYA PARECIDA CABRAL SOARES, fundamentado na alínea "a" do permissivo constitucional, contra acórdão do TJ⁄GO.
Ação: declaratória de nulidade de negócio jurídico c⁄c reivindicatória, ajuizada por Helio Xavier Pinto e Eunice Bento Xavier, em face de Jucelino Lima Soares e Katya Aparecida Cabral Soares.
Sentença: o Juízo de primeiro grau julgou procedentes os pedidos para declarar nula a escritura pública de compra e venda firmada entre Hélio e Eunice, vendedores, e Jucelino e Katya, compradores, bem como para determinar a restituição dos respectivos imóveis aos primeiros.
Primeira decisão do Relator: negou seguimento ao recurso de apelação interposto pelos compradores.
Segunda decisão do Relator: monocraticamente, reconsiderou a decisão anterior, conheceu e deu provimento à apelação, para reformar a sentença e julgar improcedentes os pedidos.
Acórdão: o TJ⁄GO negou provimento ao agravo regimental interposto pelos autores.
Acórdão nos embargos de declaração nos embargos de declaração: os segundos embargos de declaração opostos pelos autores foram acolhidos pelo TJ⁄GO, com efeitos infringentes, recebendo o acórdão a seguinte ementa:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. APELAÇÃO CÍVEL. ALEGAÇÃO DE OMISSÃO. RECONHECIMENTO. NEGÓCIO JURÍDICO. ERRO. CARACTERIZAÇÃO. EFEITO MODIFICATIVO ATRIBUÍDO. ACÓRDÃO REFORMADO.
1- Comprovada a omissão no aresto embargado e no anterior, em ambos pela falta de completo apreço às circunstâncias fáticas e jurídicas do caso, devem ser acolhidos os aclaratórios, com o efeito modificativo que da correção decorre.
2- É relativa a presunção de validade e eficácia da escritura pública de compra e venda de imóvel, comportando-se sua anulação nos casos em que, como o presente, houver a demonstração de que foi edificado o negócio jurídico com vícios do consentimento (erro e dolo).
3- A quitação plena e geral, constante de escritura pública de compra e venda, não prepondera sobre a prova uníssona de que houve a outorga, em pagamento, de um título bancário falso, sendo a anulação deste negócio medida que se impõe. Inteligência dos artigos 138 e 145 do Código Civil.
Recurso especial: alegam os recorrentes violação do art. 535 do CPC, bem como ofensa ao art. 460 do CPC e ao art. 215 do CC⁄02.
Sustentam, em suas razões, ademais da negativa de prestação jurisdicional, que o julgamento proferido pelo Tribunal de origem é extra petita, na medida em que, na petição inicial, pediu-se a declaração de nulidade do negócio jurídico por ilicitude do objeto, ao passo que, no acórdão, o TJ⁄GO anulou o ato por erro.
Afirmam, ainda, que a quitação dada em escritura pública goza de presunção absoluta do pagamento.
Juízo prévio de admissibilidade: o recurso foi inadmitido pelo Tribunal de origem, dando azo à interposição do AREsp 443.351⁄GO, provido para determinar a reautuação em especial (fl. 1.084, e-STJ).
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.438.432 - GO (2013⁄0398935-3)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : JUCELINO LIMA SOARES E OUTRO
ADVOGADO : ALEXANDRE ALENCASTRO VEIGA E OUTRO(S)
RECORRIDO : HELIO XAVIER PINTO E OUTROS
ADVOGADO : EDGAR ANTÔNIO GARCIA NEVES E OUTRO(S)
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO NANCY ANDRIGHI (RELATOR):
Cinge-se a controvérsia a definir (I) se houve negativa de prestação jurisdicional, (II) se o julgamento proferido pelo TJ⁄GO é extra petita, ou (III) se a quitação dada em escritura pública de compra e venda de imóvel gera presunção absoluta do pagamento.
1. Da violação do art. 535 do CPC (negativa de prestação jurisdicional)
01. Aduzem os recorrentes que houve violação do art. 535 do CPC, porquanto o Tribunal de origem teria rejeitado seus embargos de declaração sem aclarar a obscuridade apontada, referente a suposto julgamento extra petita.
02. Os embargos de declaração são instrumento processual excepcional e destinam-se a sanar eventual obscuridade, contradição ou omissão existente no acórdão recorrido. Não se prestam à nova análise do processo ou à modificação da decisão proferida.
03. Compulsando os autos, verifica-se que o TJ⁄GO apreciou fundamentadamente as questões pertinentes para a resolução da controvérsia, ainda que tenha dado interpretação contrária aos anseios dos recorrentes, situação que não serve de alicerce para a interposição de embargos de declaração.
04. Ademais, no entendimento firmado nesta Corte, não está o magistrado obrigado a rebater um a um os argumentos trazidos pela parte, citando todos os dispositivos legais que esta entende pertinentes para o deslinde da controvérsia. A negativa de prestação jurisdicional nos aclaratórios só ocorre se persistir a omissão no pronunciamento acerca de questão que deveria ter sido decidida e não o foi, o que não corresponde à hipótese dos autos. (AgRg no AG, nº 670.523⁄RS, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, DJ. 26.09.2005; AgRg no AG 527.272⁄RJ, JORGE SCARTEZZINI, DJU de 22.08.2005).
05. Assim, devidamente analisadas e discutidas as questões de mérito, e fundamentado corretamente o acórdão recorrido, de modo a esgotar a prestação jurisdicional, não há falar em violação do art. 535 do CPC.
2. Da violação do art. 460 do CPC (julgamento extra petita)
06. Para que se possa analisar a ocorrência de excesso de poder, consubstanciado em julgamento extra petita, faz-se necessário esclarecer que a congruência exigida do Juiz, ao decidir, tem a finalidade precípua de evitar que ele atue de ofício, preservando, assim, sua própria imparcialidade.
07. Nessa toada, não se lhe impõe a aplicação da regra do "tudo ou nada", no sentido de que, ou dá exatamente o pedido, ou nada pode ser dado, estando autorizado, ao aplicar o direito à espécie, a entregar solução jurídica diversa, desde que nos limites da pretensão deduzida pelo autor ou pelos recorrentes ("Dá-me os fatos e te darei o Direito").
08. Ademais, consoante já decidiu este Tribunal, "deve-se distinguir entre a extensão do efeito devolutivo da apelação, limitada pelo pedido daquele que recorre, e a sua profundidade, que abrange os antecedentes lógico-jurídicos da decisão impugnada. Estabelecida a extensão do objeto do recurso pelo requerimento formulado pelo apelante, todas as questões surgidas no processo, que possam interferir no seu acolhimento ou rejeição, devem ser levadas em conta pelo Tribunal" (REsp 714.068⁄SP, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 15.04.2008).
09. Citem-se, a propósito do tema, os seguintes precedentes do STJ:
A apreciação do pedido dentro dos limites postos pelas partes na petição inicial ou na apelação não revela hipótese de julgamento ultra ou extra petita." (AgRg no AREsp 15.400⁄GO, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, DJe de 01⁄02⁄2013)
Não incorre em vício a sentença que, analisando a controvérsia, concede menos do que pedido, uma vez que "(...) o exame do pedido engendrado no recurso de apelação dentro dos limites postos pelas partes não incide no vício 'in procedendo' do julgamento 'ultra' ou 'extra petita' e, consectariamente, afasta a suposta ofensa aos arts. 460 e 461, do CPC (...)" (REsp 904.548⁄PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 4⁄12⁄2008, DJe 17⁄12⁄2008). (AgRg no REsp 848.837⁄MG, Rel. Min. Og Fernandes, 6ª Turma, DJe de 15⁄08⁄2012)
A decisão extra petita é aquela inaproveitável por conferir à parte providência diversa da almejada, mercê do deferimento de pedido diverso ou baseado em causa petendi não eleita. Consectariamente, não há decisão extra petita quando o juiz examina o pedido e aplica o direito com fundamentos diversos dos fornecidos na petição inicial ou mesmo na apelação, desde que baseados em fatos ligados ao fato-base. Precedentes do STJ: AgRg no REsp 1164488⁄DF, SEGUNDA TURMA, DJe 07⁄06⁄2010; RMS 26.276⁄SP, QUINTA TURMA, DJe 19⁄10⁄2009; e AgRg no AgRg no REsp 825.954⁄PR, PRIMEIRA TURMA, DJ de 15⁄12⁄2008. (REsp 1107219⁄SP, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe de 23⁄09⁄2010)
10. Na hipótese específica dos autos, a conclusão do TJ⁄GO – de que o negócio jurídico é anulável por vício resultante de erro e dolo – decorreu dos fatos que fundamentaram o pedido inicial, ao revés do que alegam os recorrentes, de modo que não há falar em julgamento extra petita; se não, vejamos este trecho da exordial:
(...) em 23 de março de 2004, antes de vencer o prazo estipulado no documento emitido pelo CREDITFIN GROUP (25⁄2⁄05), LUIZ AUGUSTO NETTO COSAC pediu para rescindir a escritura retromencionada e que fosse lavrada uma nova escritura, desta vez em nome dos ora Requeridos JUCELINO LIMA SOARES e sua esposa KATYA APARECIDA CABRAL SOARES, os AUTORES sem receber nenhum valor e acreditando estarem tratando com pessoas de bem, aceitaram o pedido e a escritura foi lavrada, conforme cópia autenticada em anexo.
Ocorre que após o vencimento do documento emitido pelo CREDTFIN GROUP, ou seja, 25 de fevereiro de 2005, os AUTORES vêm tentando receber o valor contido no referido documento, dado em pagamento aos imóveis, instalações e mercadorias objeto da transação, sem lograrem êxito, sendo que ultimamente os Requeridos e os indivíduos que os auxiliam na aquisição ilícita estão evitando contatos.
Diante da situação que se instalou os AUTORES em 06 de julho de 2007, após várias tentativas de contato, utilizando inclusive os serviços profissionais, e, percebendo que estavam sendo evitados, via de seus procuradores, resolveram checar a validade do documento emitido pelo CREDITFIN GROUP e procuraram um perito legalmente inscrito junto ao INSTITUTO Brasileiro de Criminalística sob a matrícula nº 002⁄2000, quando tomaram conhecimento que o documento dado por João Carlos Meirelles em pagamento aos imóveis é falso, de confecção duvidosa, não servindo para o fim a que se propõe.
(...)
Como se verifica os Requeridos em conluio com os meliantes aceitaram lançar na escritura de compra e venda a declaração falsa de que estavam pagando os imóveis "em moeda corrente do país", sem, contudo dispor das mesmas, desta feita deixaram transparecer a conduta comissiva por omissão, ou seja, agiram de forma voluntariosa, deixando de tomar uma providência necessária para a concretização do negócio omitindo o não pagamento de fato, assim sendo incorreram em dolo, causando prejuízo e obtendo vantagem de um ilícito penal, conforme descreve o artigo 171 do Código Penal Brasileiro, sendo que tal conduta gerou apuração criminal junto a justiça criminal federal e justiça criminal. (fls. 09⁄10, e-STJ)
11. À vista do exposto, não há falar em violação do art. 460 do CPC.
3. Da violação do art. 215 do CC⁄02 (presunção de pagamento decorrente da quitação dada em escritura pública)
12. Pretendem os recorrentes a manutenção do negócio jurídico de compra e venda de imóveis celebrado com os recorridos, em cuja escritura pública consta, segundo arrazoam, a seguinte informação: "(...) importância essa que os outorgantes vendedores confessam e declaram já haver recebido, em moeda corrente nacional, contada e achada certa, pelo que se dão por pagos e satisfeitos, dando ao comprador plena e geral quitação" (fl. 975, e-STJ).
13. Afirmam, para tanto, que a quitação dada em escritura pública gera a presunção absoluta do pagamento.
14. Com efeito, nos termos do art. 215 do CC⁄02, a escritura lavrada em cartório tem fé pública, o que significa dizer que é documento dotado de presunção de veracidade.
15. A presunção, nas palavras de Cândido Rangel Dinamarco, "é um processo racional do intelecto, pelo qual do conhecimento de um fato infere-se com razoável probabilidade a existência de outro ou o estado de uma pessoa ou coisa" (Instituições de Direito Processual Civil. Vol. III. 4ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 113).
16. Sob essa ótica, a regra do art. 215 do CC⁄02 é fruto de uma dedução, feita pelo legislador, da qual se extrai que a quitação contida em documento lavrado em notas de tabelião – fato-base – permite supor que houve o pagamento – fato presumido –, porque isso é o que ordinariamente acontece (presunção legal). Sacrifica-se, pois, o que menos acontece em favor do que mais acontece, como foi dito por Pontes de Miranda.
17. Na essência, a presunção legal relativa diferencia-se da absoluta, segundo a lição de Barbosa Moreira, porque "naquela o que se dispensa é apenas a prova de certo fato; nesta, dispensa-se o próprio fato em si mesmo" (Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 63-64). Em outras palavras, explica o doutrinador:
Quando a lei consagra uma presunção absoluta (...) o que na verdade faz é tornar irrelevante, para a produção de determinado efeito jurídico, a presença deste ou daquele elemento ou requisito no esquema fático. Se não existisse a presunção, seria indispensável, para que se produzisse o efeito, o concurso de x, y e z; estabelecendo uma presunção absoluta em relação a z, a lei faz depender a produção do efeito somente do concurso de x e y. (Anotações sobre o título "Da Prova" do novo Código Civil. Reflexos do novo Código no Direito Processual. Salvador: Juspodivm, 2006. p. 210-211)
18. Fredie Didier bem esclarece que, nas presunções absolutas, "a conclusão extraída pela lei é havida como verdade indisputável" (Curso de Direito Processual Civil. 8ª ed. v. 2. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 63), elencando como exemplos: I) a presunção de conhecimento do terceiro sobre a penhora de imóvel que fora transcrita na matrícula do bem (art. 659, § 4º, do CPC); II) presunção de que um cônjuge autorizou o outro a contrair dívidas em benefício da economia doméstica (art. 1.643 do CC⁄02); III) presunção de parcialidade do juiz nas causas de impedimento (art. 134 do CPC). São fatos, à evidência, que sequer possibilitam a realização de prova em contrário.
19. Diferente, contudo, é o que ocorre com a presunção legal do art. 215 do CC⁄02, que implica, de um lado, a desnecessidade de se provar os fatos contidos na escritura, à luz do que dispõe o art. 334, IV, do CPC, e, de outro, a inversão do ônus da prova, em desfavor de quem, eventualmente, suscite a sua invalidade.
20. Outro não é o motivo pelo qual os arts. 214 e 216 da Lei 6.015⁄76 (Lei de Registros Públicos) assim preveem:
As nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente de ação direta.
O registro poderá também ser retificado ou anulado por sentença em processo contencioso, ou por efeito do julgado em ação de anulação ou de declaração de nulidade de ato jurídico, ou de julgado sobre fraude à execução.
21. Nota-se, portanto, que a quitação dada em escritura pública não é uma "verdade indisputável", na medida em que admite a prova de que o pagamento não foi efetivamente realizado, evidenciando, ao fim e ao cabo, a invalidade do instrumento em si, porque eivado de vício que o torna falso. Assim ocorreu na hipótese dos autos, segundo o Tribunal de origem.
22. Nessa ordem de ideias, do mesmo modo que o registro da escritura pública não gera presunção absoluta de propriedade (REsp 664.523⁄CE, Rel. Min. Raul Araújo, DJe de 14⁄08⁄2012), entende-se que a quitação dada em escritura pública presume o pagamento, até que se prove o contrário.
Forte nessas razões, CONHEÇO do recurso especial e NEGO-LHE PROVIMENTO.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
TERCEIRA TURMA
Número Registro: 2013⁄0398935-3
PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.438.432 ⁄ GO
Números Origem: 1434390188 200793137780 200902052122 31377838 3137783820078090051 5037590
PAUTA: 22⁄04⁄2014 JULGADO: 22⁄04⁄2014
Relatora
Exma. Sra. Ministra NANCY ANDRIGHI
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. HUMBERTO JACQUES DE MEDEIROS
Secretária
Bela. MARIA AUXILIADORA RAMALHO DA ROCHA
AUTUAÇÃO
RECORRENTE : JUCELINO LIMA SOARES E OUTRO
ADVOGADO : ALEXANDRE ALENCASTRO VEIGA E OUTRO(S)
RECORRIDO : HELIO XAVIER PINTO E OUTROS
ADVOGADO : EDGAR ANTÔNIO GARCIA NEVES E OUTRO(S)
ASSUNTO: DIREITO CIVIL - Obrigações - Espécies de Contratos - Compra e Venda
SUSTENTAÇÃO ORAL
Dr(a). ALEXANDRE ALENCASTRO VEIGA, pela parte RECORRENTE: JUCELINO LIMA SOARES
Dr(a). EDGAR ANTÔNIO GARCIA NEVES, pela parte RECORRIDA: HELIO XAVIER PINTO
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Turma, por unanimidade, conheceu do recurso especial, mas lhe negou provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a).
Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva (Presidente) votaram com a Sra. Ministra Relatora.

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