terça-feira, 22 de julho de 2014

É possível o ajuizamento de ação anulatória de doação, estando ainda vivo o doador

Íntegra do acórdão:
apreciado e julgado Agravo Retido, com a extinção do processo, ou seja reformada a sentença monocrática, para julgar improcedente o pedido inicial, com a inversão do ônus da sucumbência.
Em contra-razões (f. 231-235), alegam as apeladas Líria Terezinha Pereira Silveira Henrique, Ana Glória Pereira Silveira e Maria Olívia Pereira Silveira Zago, em breve relato, que inexiste qualquer nulidade processual por ausência de citação; que é majoritário na doutrina e jurisprudência o entendimento de ajuizamento de ação de redução de doação inoficiosa a partir do ato de liberalidade, cujo prazo prescricional começa a fluir da data do negócio jurídico inválido; que o apelante/doador não comprovou que tivesse outros bens, senão aqueles cuja metade fora doada aos recorrentes litisconsortes; que nada obsta o direito de ação das apeladas de pleitearem a anulação da doação inoficiosa. Ao final, requer seja negado provimento ao recurso, mantendo-se na íntegra a r. sentença do Juízo a quo.
Preparo devidamente efetivado às f. 227.
Conheço do recurso, pois presentes os pressupostos de admissibilidade.
Líria Terezinha Pereira Silveira Henrique, Ana Glória Pereira Silveira e Maria Olívia Pereira Silveira Zago ajuizaram Ação de Nulidade de Doação de Bens Imóveis em face de Otácilio Martins Silveira, posteriormente incluídos na lide Maria Aparecida de Oliveira Silveira, Célio Martins da Silveira, Sérgio Martins da Silveira, Célia Martins Paiva e Sônia Aparecida Silveira Sousa, alegando serem nulas as doações de imóveis realizadas por Otácilio Martins Silveira, ao argumento de que a legítima foi vulnerada, tendo em vista terem sido reconhecidas como filhas, em Ação de Investigação de Paternidade.
Agravo Retido
Requerem os apelantes seja conhecido, julgado e provido o Agravo Retido interposto (f.84-86), em razão da obrigatoriedade do litisconsórcio necessário unitário.
Alegam os recorrentes que, após especificação de provas, o Juízo determinou a regularização do processo, mesmo sem requerimento das autoras, ora recorridas, caracterizando-se afronta ao artigo 125, inciso I, c/c o artigo 2º, ambos do CPC. Alegam, ainda, que o processo caminha para frente, havendo preclusão pro judicato.
O litisconsórcio envolve o tema processual da legitimidade de parte, ainda que de forma indireta. Para esse tema, ao contrário do que alegam os recorrentes, não se opera a preclusão pro judicato, podendo ser revista a qualquer tempo e em qualquer grau de Jurisdição e até pelo mesmo Julgador.
A respeito, Sérgio Sahione Fadel, in "Código de Processo Civil Comentado", volume I, Editora Forense, Rio de Janeiro, 6ª edição, 1987, página 449, leciona:
"Conhecimento de ofício da matéria dos itens IV, V e VI - A ausência dos pressupostos processuais, a perempção, a litispendência, a coisa julgada e a falta das condições da ação são matérias de que o juiz pode conhecer a qualquer tempo, enquanto não proferir decisão de mérito, que lhe tranca a jurisdição, independentemente de provocação da parte.
Todas essas são questões de ordem pública, que ao Estado, por seu órgão próprio, cumpre fiscalizar e evitar, como dever de ofício."
Não estão sujeitas à preclusão pro judicato as matérias de ordem pública, entre elas as que dizem respeito à condição de procedibilidade da ação, uma vez que o processo ainda está em curso, nada impedindo o reexame de questões atinentes à existência, ou não, dos requisitos de ordem processual informadores, para se vislumbrar a adequação da pretensão posta em Juízo.
Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
"PROCESSUAL CIVIL. MULTA CONTRATUAL. REDUÇÃO. POSSIBILIDADE. LEGITIMIDADE DE PARTE. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. PRECLUSÃO PRO JUDICATO. IMPOSSIBILIDADE. - (...) Legitimidade de parte é matéria de ordem pública, analisável em qualquer grau de jurisdição. Inexistência de preclusão pro judicato. Agravo Regimental não provido" (STJ - AgRg no Ag 669130/PR - 4ª Turma - Rel. Min. Fernando Gonçalves - Julgamento em 21/08/2007 - Publicação no DJ em 03/09/2007, página 180).
"RECURSO ESPECIAL. ART. 535 DO CPC. OFENSA INEXISTENTE. MATÉRIAS DE ORDEM PÚBLICA NÃO SE SUBMETEM À PRECLUSÃO NAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. ENUNCIADOS NS. 5 E 7/STJ. DISSÍDIO PRETORIANO NÃO CONFIGURADO. PRECEDENTES DO STJ. - (...) As matérias de ordem pública podem ser levantadas a qualquer tempo nas instâncias ordinárias, inexistindo preclusão em relação a elas. Precedentes do STJ. (...)" (STJ - REsp 781050/MG - 4ª Turma - Rel. Min. Cesar Asfor Rocha - Julgamento em 09/05/2006 - Publicação no DJ em 26/06/2006, página 168).
"PROCESSO CIVIL. CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO EM CONTA-CORRENTE. EXECUTIVIDADE. INDEFERIMENTO DA INICIAL. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE COISA JULGADA EM RELAÇÃO AO RÉU CITADO SOMENTE A POSTERIORI. GARANTIAS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. ENUNCIADO N. 233 DA SÚMULA/STJ. RECURSO PROVIDO. - (...) Nas instâncias ordinárias, não há preclusão em matéria de condições da ação e pressupostos processuais enquanto a causa estiver em curso, ainda que haja expressa decisão a respeito, podendo o Judiciário apreciá-la mesmo de ofício (arts. 267, § 3º e 301, § 4º, CPC). (...)"
(STJ - REsp 285402/RS - 4ª Turma - Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira - Julgamento em 22/03/2001 - Publicação no DJ em 07/05/2001, página 150).
No caso, como litisconsórcio diz respeito à legitimidade de parte, entendo que não ocorreu a alegada preclusão pro judicato, motivo pelo qual não há irregularidade na determinação do Juízo para a regularização do processo, com a citação dos demais litisconsortes, após a determinação de especificação de provas.
Nestes termos, NEGO PROVIMENTO ao Agravo Retido.
Preliminar: petição inicial inepta
Alegam os apelantes que a petição inicial é inepta, em razão da impossibilidade jurídica de se considerar nula a doação operada, nos termos do artigo 295, V, do CPC.
Dispõe o artigo 295, V, do CPC:
"Artigo 295 - A petição inicial será indeferida:
V - quando o tipo de procedimento, escolhido pelo autor, não corresponder à natureza da causa, ou ao valor da ação; caso em que só não será indeferida, se puder adaptar-se ao tipo de procedimento legal."
A respeito, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, in "Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante", Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 7ª edição, 2003, nos comentários ao artigo 295, nota 11, lecionam:
"Procedimento inadequado. Quando o autor escolher para a ação procedimento inadequado, vale dizer, em desconformidade com o que prescreve a lei para o caso, o juiz deve intimá-lo para que emende a petição inicial (CPC 284). Somente depois dessa providência, não havendo requerimento do autor para adaptar-se ao procedimento legal, o juiz indeferirá a petição inicial. O indeferimento liminar, sem dar-se oportunidade ao autor para emendar a inicial, caracteriza cerceamento de defesa."
Em análise da petição inicial, verifica-se que as autoras, ora apeladas, ajuizaram a presente ação com o objetivo de as doações feitas por Otacílio Martins Silveira serem declaradas nulas, por ofenderem a legítima.
Dispõe o artigo 549, do Código Civil:
"Artigo 549 - Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento."
Assim, a meu sentir, não há impropriedade no procedimento escolhido, posto que a legislação civil garante às recorridas o direito de pleitear judicialmente a nulidade de doação que exceder o que o doador poderia dispor em testamento.
Ressalte-se, ainda, que a petição inicial foi redigida de forma clara e inteligível, com a individualização de seu objeto, tendo sido perfeitamente possível aos apelantes refutarem todos os argumentos nela apresentados, o que de fato ocorreu.
Por outro lado, a pertinência ou não do reconhecimento da nulidade das doações é matéria a ser analisada no mérito da ação, com a procedência ou improcedência do pedido.
Nestes termos, REJEITO a preliminar suscitada.
Mérito
Quanta à possibilidade de ajuizamento de Ação Anulatória de Doação, estando ainda vivo o doador, Washington de Barros Monteiro, in "Curso de Direito Civil", Obrigações, 2ª parte, Editora Saraiva, São Paulo, página 127, ensina:
"O reconhecimento da inoficiosidade pode ser pedido em vida do doador; como há pouco fizemos sentir, o legislador pátrio imprimiu ao direito do herdeiro lesado a nota de atualidade e não de mera expectativa; consumada a doação inoficiosa, pode ele ingressar em Juízo imediatamente com a competente ação de redução."
Esse, também, é o entendimento deste Tribunal:
"CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ATO JURÍDICO PROPOSTA COM FINCAS NO ART. 1.176, DO CCB. - Possibilidade da propositura de tal ação, ainda em vida do doador. Recurso Provido para cassar a sentença" (TJMG - Apelação Cível 1.0000.00.208454-9/000 - Rel. Des. Pinheiro Lago - Julgamento em 16/04/2002 - Publicação no DJ em 10/05/2002).
Assim, é possível a propositura de ação para anular doação inoficiosa, mesmo estando o doador vivo, como no caso.
Nestes termos, não há motivo para modificar a sentença quanto a esta alegação.
Com relação à prova da existência ou não de outros bens, ressalte-se que a distribuição do ônus probatório vem fixada no Código de Processo Civil segundo requisitos claros e objetivos, previstos em seu artigo 333, que dispõe:
"Artigo 333 - O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor."
A respeito, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, in "Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante", Editora Revista dos Tribunais, 7ª edição, 2003, nos comentários ao artigo 333, nota 1, lecionam:
"Ônus da prova. A palavra vem do latim, onus, que significa carga, fardo, peso, gravame. Não existe obrigação que corresponda ao descumprimento do ônus. O não atendimento do ônus de provar coloca a parte em desvantajosa posição para a obtenção do ganho de causa. A produção probatória, no tempo e na forma prescrita em lei, é ônus da condição de parte."
Não se pode deixar de considerar que o negócio jurídico de doação (seja entre ascendentes e descendentes, ou não) deve revestir-se, sob pena de nulidade, de formalidades. Entre elas, cite-se a necessidade de reserva para subsistência do doador e a limitação à parcela disponível de seu patrimônio, que constituem limitações legais ao poder de disposição gratuita conferido ao proprietário de bens, nos termos dos artigos 548 e 549, do Código Civil, que dispõem:
"Artigo 548 - É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente pra a subsistência do doador."
"Artigo 549 - Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento."
No que se refere ao primeiro dispositivo, nenhuma das partes alegou que o doador, ao transferir a propriedade dos imóveis objetos das doações, perdeu sua capacidade de subsistência, não havendo, ademais, qualquer prova nos autos nesse sentido.
Quanto à questão relativa à metade disponível do patrimônio do doador, impõe-se, para tanto, observância ao disposto no artigo 1.789, do Código Civil, in verbis:
"Artigo 1.789 - Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor de metade da herança."
Pela análise conjunta de ambos os dispositivos (artigos 549 e 1.789, do Código Civil) conclui-se que a doação deve se limitar a 50% do patrimônio do doador que possui herdeiros necessários.
A respeito Arnaldo Rizzardo, in "Contratos", Editora Forense, Rio de Janeiro, 2ª edição, 2001, página 340, leciona:
"Se o testador possuir herdeiros necessários - descendentes ou ascendentes -, não poderá dispor, em testamento, de mais de metade da herança, ou seja, da chamada porção ou quota disponível. Em se tratando de doação, autoriza-se a liberalidade numa porção que vai até o limite da quota disponível, calculada entre o montante dos bens à época existentes. À essa doação que excede a meação disponível se dá o nome de inoficiosa, sendo absolutamente nula."
No mesmo sentido, ensina Sílvio de Salvo Venosa, in "Direito Civil: Direito das Sucessões", Editora Atlas, São Paulo, 3ª edição, Atlas, 2003, página 119:
"O art. 549 comina com nulidade a doação cuja parte exceder a que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. Trata-se da doação inoficiosa. Questão importante é calcular a metade disponível, ou seja, o montante que pode ser doado em cada oportunidade. A regra a ser seguida é, portanto, avaliar o patrimônio do doador, quando do ato. Se o montante doado não atinge a metade do patrimônio, não haverá nulidade."
Inicialmente, ressalte-se que as apeladas comprovaram ser herdeiras necessárias, através de Ação de Investigação de Paternidade, conforme documentos de f. 66-74, situação reconhecida posteriormente às doações ora impugnadas.
A fim de se verificar a regularidade das doações questionadas nesses autos, faz-se necessário conhecer o patrimônio do doador por ocasião daqueles negócios jurídicos, para efeitos de aferição da observância, ou não, do limite legal, equivalente à chamada metade disponível, ressaltando-se que, para tanto, deve-se levar em conta todos os bens do doador existentes na época da consolidação do negócio.
E em análise dos autos, verifica-se que as apeladas informam na petição inicial que o doador possuía, à época da liberalidade, cinco imóveis (f. 03), in verbis:
"3- O Requerido é casado com a Sra. Maria Aparecida de Oliveira Silveira com a qual tem outros 04 (quatro), sendo assim proprietário de 50% (cinqüenta por cento) de vários imóveis rurais e urbano. Assim, o Requerido doou a sua metade de 04 (quatro) imóveis rurais para somente os filhos havidos deste casamento, excluindo-se apenas desta doação 01 (um) imóvel urbano da Rua Jacutinga nº 146 (B. São Benedito), esquecendo-se, assim, das ora Requerentes, que deveriam ter sido também em nome das mesmas."
Como se vê, as apeladas informaram que o doador deixou de fora da doação apenas um imóvel urbano, doando a metade dos outros quatro imóveis rurais.
Em análise das contestações de Otacílio Martins Silveira (f. 36-40), de Maria Aparecida de Oliveira Silveira (f. 120), de Célia Martins Paiva e seu marido Wilson Antônio de Paiva (f. 136-137) e de Sônia Aparecida Silveira Souza e seu marido Wagner José de Sousa (f. 152-153), verifica-se que os apelantes não afirmaram ser o doador proprietário de outros imóveis, além dos enumerados pelas recorridas na petição inicial, tornando tal fato incontroverso.
Além disso, os apelantes informaram que a matéria posta em Juízo era meramente de direito, não necessitando de produção de outras provas, além das constantes nos autos, requerendo o julgamento antecipado da lide (f. 158).
Como após as doações apareceram três outras herdeiras, e não havendo outros bens à época das liberalidades, é evidente que ocorreu doação inoficiosa.
Nestes termos, tendo em vista que as apeladas comprovaram que foram preteridas e que as doações, à época da liberalidade, atingiram a parte indisponível dos bens do doador, ora recorrente Otacílio Martins da Silveira, tendo este se omitido em comprovar a existência de outros bens, não há motivos para modificação da sentença.
Como não houve alteração da decisão de primeiro grau, mantém-se a distribuição do ônus da sucumbência.
Com estas razões, NEGO PROVIMENTO a Agravo Retido, REJEITO PRELIMINAR de inépcia da inicial e NEGO PROVIMENTO ao recurso, para confirmar a r. sentença recorrida.
Custas recursais pelos apelantes.
Em síntese, para efeito de publicação (artigo 506, III, do CPC):
- Negaram provimento a Agravo Retido.
- Rejeitaram preliminar de inépcia da inicial.
- Negaram provimento ao recurso, para confirmar a r. sentença recorrida.
Votaram de acordo com o(a) Relator(a) os Desembargador(es): TARCISIO MARTINS COSTA e JOSÉ ANTÔNIO BRAGA.
SÚMULA : NEGARAM PROVIMENTO AO AGRAVO RETIDO, REJEITARAM PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO.

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