segunda-feira, 8 de novembro de 2021

DA AUDITORIA DOCUMENTAL DA MATRÍCULA IMOBILIÁRIA

 Luiz Fernando Godo é advogado e sócio da Imóveis Crystal, com atuação na área de Direito Imobiliário e Advocacia Extrajudicial, especializados em auditoria documental imobiliário e em processos de locação e venda imobiliária.

e-mail lfgodo@adv.oabsp.org.br

Resumo

A compra de um imóvel faz parte do sonho de grande parte da população do Brasil e na maioria dos casos o imóvel acaba sendo o maior patrimônio de um brasileiro durante toda a sua vida. Sua aquisição é um momento de grande entusiasmo, mas, ao mesmo tempo, gera grandes expectativas frente aos vários problemas jurídicos que podem ocorrer neste processo. Nosso estudo foca na auditoria documental da matrícula imobiliária de imóveis urbanos prontos, sempre visando criar meios de viabilizar a concretização do negócio imobiliário, seja, através de instrumento público (escritura pública de venda e compra) ou instrumento particular com força de escritura pública (contrato de financiamento ou contrato de liberação de FGTS). O objetivo deste estudo é trazer elementos da auditoria jurídica documental (ou due diligence) da matrícula imobiliária e seus reflexos para a concretização do negócio imobiliário. A auditoria documental pode ser definida como o conjunto de análises realizadas a partir de documentos públicos e privados, com o objetivo de determinar possíveis riscos capazes de afetar a segurança e a integridade de um negócio imobiliário. Não nos restringiremos na análise dos elementos mais comuns que possam impactar na segurança jurídica da aquisição imobiliária, mas, estenderemos nossos estudos para a análise das inconsistências comuns nas matrículas imobiliárias que, apesar de não inviabilizarem o negócio imobiliário, acabam por atrasar o seu andamento, gerando custos adicionais e, principalmente, desgaste entre as partes negociantes. A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica e os nossos campos de estudos são o Direito Imobiliário e o Direito Registral.

Palavras-chaves: Auditoria Documental. Segurança Jurídica. Aquisições Imobiliárias. Matrícula Imobiliária.


Introdução

            A auditoria documental imobiliária, também conhecida pelo termo em língua inglesa “due diligence”, pode ser definida como o conjunto de análises realizadas a partir de documentos públicos e privados, com o objetivo de determinar possíveis riscos jurídicos capazes de afetar a segurança jurídica e a integridade de um negócio imobiliário de compra e venda, securitização ou outros negócios que envolvam imóveis.

            Entendemos, pela nossa vivência prática de mais de 20 anos de mercado imobiliário, assessorando imobiliárias, franquias imobiliárias, compradores e vendedores, que a auditoria documental da matrícula imobiliária não deve estar limitada apenas a análise dos riscos para a segurança jurídica do negócio pretendido, mas, também, deve abranger qualquer tipo de inconsistência documental que possa vir a impactar o próprio andamento do negócio, apesar de não representar um risco jurídico inviabilizador ao negócio em si.

            Nosso estudo focará a auditoria documental da matrícula do imóvel com o objetivo de concretização formal do negócio imobiliário, seja através de instrumento público (escritura pública de venda e compra) ou instrumento particular com força de escritura pública (contrato de financiamento ou contrato de liberação de FGTS), que são os principais títulos hábeis para a transferência de propriedade de um bem imóvel.

            Analisaremos a matrícula imobiliária considerando os gravames existentes, situação fiscal e de multas administrativas, títulos aquisitivos, restrições administrativas e judiciais, obrigações vinculadas ao imóvel (propter rem) e certidões do condomínio edilício, quando o caso.

            Apresentaremos algumas inconsistências comuns de informações pessoais dos vendedores e de informações públicas que envolvem imóveis que, apesar de não afetarem a segurança jurídica do negócio, acabam provocando atrasos e dissabores no processo de aquisição na medida em que acabam acarretando inconsistências nas análises de financiamentos imobiliários e notas devolutivas dos cartórios de imóveis, atrasando a concretização do negócio imobiliário e gerando desgastes desnecessários entre os contratantes.

1.      Da Auditoria Documental do Imóvel – Aspectos Intrínsecos

            Inicialmente devemos assumir como parâmetro básico de segurança que todas as certidões e documentos obtidos para a realização de qualquer auditoria documental devem estar atualizadas, assim entendido, com prazo de expedição inferior a 30 (trinta) dias, independentemente do prazo a maior que conste na Certidão ou Documento.

            A matrícula imobiliária é o documento público que reúne as informações relativas ao imóvel, emitida junto ao Cartório de Registro de Imóveis de uma circunscrição imobiliária específica. A Circunscrição Imobiliária é o território no qual atua o Cartório de Registro de Imóveis.

Dentre as informações constantes na matrícula imobiliária temos a localização exata (constando o logradouro, respectivo número do imóvel e número da unidade autônoma para o caso de apartamentos ou casas em condomínio), a identificação da circunscrição imobiliária, o número do contribuinte municipal (IPTU) individualizado, área do terreno, área construída, área privativa e área comum (no caso de apartamentos ou casas em condomínio), cadeia dominial (sequência histórica de todos os proprietários do imóvel, com a forma em que esta propriedade foi adquirida), gravames (anotações que limitam a propriedade de um bem imóvel), constrições judiciais (indisponibilidade, penhora etc.), enfim, todos os atos jurídicos que dizem respeito ao imóvel devem estar consolidados através de registros ou averbações na matrícula imobiliária para ter validade em relação a terceiros.

            A matrícula imobiliária consolida várias informações, como retro observado e parte delas estão vinculadas as características do terreno e da construção existente.

            Compete aos municípios regulamentar o uso dos terrenos e a respectiva forma de construção, segundo explícito no Artigo 30, VIII, da Constituição Federal onde cabe aos Município “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”, ou seja, os Municípios são competentes para “legislar sobre questões que respeitem a edificações ou construções realizadas no seu território, assim como sobre assuntos relacionados à exigência de equipamentos de segurança, em imóveis destinados a atendimento ao público”[1].

            Para dar início a uma auditoria documental de um imóvel devemos levantar os dados cadastrais do mesmo junto a Municipalidade, para possibilitar a comparação com os dados constantes na matrícula imobiliária a ele vinculado.

            No município de São Paulo utilizamos a Certidão de Dados Cadastrais, que é uma certidão atualizada anualmente, a qual indica expressamente o local do imóvel, o contribuinte/proprietário com sua qualificação (CPF/CNPJ e nome completo), dados cadastrais do terreno (área incorporada, área não incorporada, área total, testada e fração ideal), dados cadastrais da construção (área construída, área ocupada pela construção, ano de construção, padrão de construção e uso do imóvel) entre outras informações.

            Com base nas informações obtidas junto a municipalidade, fazemos a comparação com as informações constantes na matrícula imobiliária, buscando inconsistências.

Dentre as principais inconsistências entre os dados da matrícula imobiliária e os dados cadastrais municipais, encontramos: a divergência em relação ao nome do logradouro e ao número do imóvel, inexistência da averbação do Cadastro de Contribuinte Municipal (IPTU) individualizado, diferenças de área construída, diferenças de área de terreno, divergências das numerações dos documentos pessoais do(s) proprietário(es) e divergências em relação ao estado civil etc.

            As divergências de informação entre a matrícula imobiliária e os dados cadastrais constantes na Prefeitura não são um elemento impeditivo do negócio imobiliário, mas, costumam causar pendências na análise jurídica das instituições financeiras para a concessão de crédito imobiliário. Estas divergências acabam exigindo procedimentos registrais retificatórios, no caso de divergências de área construída, área de terreno e a necessidade de averbações para ajuste das informações nos demais casos, o que gera atraso no andamento dos processos de financiamentos, custos adicionais e, principalmente, desgaste entre as partes negociantes.

            Nos casos em que não há financiamento bancário ou liberação de FGTS, ou seja, nos casos em que o negócio imobiliário é formalizado diretamente entre as partes através de escritura pública de compra e venda, as divergências que não envolvam áreas do imóvel (construída e de terreno) e qualificação do imóvel (logradouro e número do prédio ou terreno) podem ser retificadas como simples averbações antecedentes ao registro da escritura pública diretamente no Cartório de Registro de Imóveis.

            A situação fiscal do imóvel é outro ponto importante no processo de auditoria documental.

O levantamento da existência de débitos de tributos imobiliários no município de São Paulo como de IPTU, contribuições de melhoria e taxas anteriores ao exercício de 2.000 (de Conservação, de Limpeza e de Combate a Sinistro) é essencial para uma análise adequada da situação fiscal do imóvel.

O Imposto Territorial Urbano, exige uma atenção especial. Trata-se de um imposto de competência municipal, cujo fato gerador é a propriedade de imóvel urbano, sendo que a sua obrigação recai sobre o próprio bem (imóvel) e não sobre a pessoa do proprietário/possuidor, ou seja, o imóvel responde pela dívida com o fisco municipal.

Podemos concluir que mesmo dívidas de IPTU de antigos proprietários podem vir a prejudicar o novo adquirente.

Outro cuidado que se deve ter é a avaliação de dívidas de IPTU do ano corrente, pois, nem sempre o inadimplemento das parcelas do ano em curso afeta a emissão da Certidão Negativa de Débitos Imobiliários.

No caso da existência de pendências de IPTU com o Fisco Municipal, seja do exercício fiscal em curso ou de anteriores, é essencial o ajuste da solução deste tipo de pendência entre as partes compradora e vendedora, seja através da quitação anterior, seja através de desconto no preço do negócio imobiliário.

No município de São Paulo temos ainda uma segunda certidão que se refere a dívidas de natureza não tributária (UNAI), abrangendo multa de sujeira na calçada, má conservação da calçada, propaganda irregular etc., que é muito negligenciada, mas tem um impacto tão grande quanto as dívidas fiscais no que se refere ao passivo de um imóvel.

Esta certidão é obtida junto as subprefeituras com prazo de entrega de 30 (trinta) dias úteis, normalmente solicitamos uma pesquisa simples, de emissão imediata, no setor de multas da subprefeitura, o que garante a informação da inexistência de qualquer pendência capaz de gerar passivo ao imóvel.

Esta certidão (ou pesquisa) de natureza não tributária (UNAI) é de extrema relevância quando o objeto do negócio imobiliário é uma casa/sobrado ou terreno, face ao impacto financeiro individual ao proprietário/vendedor, sendo de menor relevância para condomínios, na medida em que, este tipo de multa recai para o condomínio e rateado entre todos os condôminos na proporção de sua fração ideal.

Em havendo pendências nesta pesquisa é fundamental o ajuste da solução deste tipo de passivo entre as partes compradora e vendedora, seja através da quitação anterior, seja através de desconto no preço do negócio imobiliário.

            De forma complementar, fazemos as pesquisas para apurar se o imóvel tem alguma restrição de tombamento, se está em área de manancial, área de patrimônio ou proteção ambiental e, finalmente, se o imóvel se encontra em área contaminada.

            A avaliação das restrições do imóvel acima citadas ganha relevância se houver interesse dos adquirentes em construção nova ou reformas de maior porte, pois, há áreas que são abrangidas pela legislação ambiente e do patrimônio cultural e histórico do Município, que acarretam limitações construtivas e de uso.

            Outra avaliação importante a ser realizada no que tange ao imóvel é o seu zoneamento e os parâmetros de ocupação permitidos pela municipalidade.

            Focando no Município de São Paulo, há vários zoneamentos, cujas caracterizações são previstas pela Lei 16.050 de 22 de março de 2.017. Basicamente, há 3 (três) tipos de qualificações territoriais usadas, a saber, territórios de transformação, territórios de qualificação e territórios de preservação, cada qual com sua caracterização específica, que não é objeto de estudo neste trabalho.

            Estes zoneamentos são relevantes sob a ótica do uso do imóvel, principalmente se o objetivo de uso for comercial (não residencial). Várias zonas restringem profundamente a utilização comercial genericamente falando, enquanto outras limitam atividades específicas. Daí a importância deste estudo na auditoria documental.

            Os parâmetros de uso, por sua vez, são elementos que permitem saber a capacidade construtiva do terreno do imóvel e o quanto de área construída irregular pode ser objeto de regularização, genericamente falando.

            Outro elemento fundamental a ser avaliado é o valor venal de referência do imóvel.

            No Município de São Paulo o Valor Venal de Referência serve de base de cálculo mínima para a cobrança do ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis) incidente sobre as vendas imobiliárias, assim como, base de cálculo mínima para a cobrança do ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doações) incidentes nas transmissões imobiliárias por doação ou sucessão hereditária e impactam, também, no cálculo das custas de lavratura das escrituras públicas de venda e compra dos Cartórios de Notas e do custo de registro dos instrumentos translativos (escrituras, instrumentos particulares com força de escritura pública etc.) na matricula imobiliária dos Cartórios de Registro de Imóveis.

            Há inúmeras discussões jurídicas em São Paulo sobre a constitucionalidade da utilização do Valor Venal de Referência na base de cálculo do ITBI e do ITCMD. O Tribunal de Justiça de São Paulo, no Incidente de Resolução de Demanda Repetitiva 19, firmou entendimento vinculante de que a base de cálculo destes impostos deve ser o valor dado ao imóvel para fim do cálculo do IPTU do ano em curso, valor este obtido através da Notificação de Lançamento, emitida todo início de ano.

            Os dados pessoais dos proprietários (eventuais vendedores) é outro ponto importante de avaliação na matrícula imobiliária.

            São comuns inconsistências com a numeração dos documentos de RG e CPF e estado civil que constam na matrícula imobiliária e os documentos pessoais atualizados. Nestes casos, se o negócio for formalizado através de escritura pública de compra e venda, estas informações divergentes podem ser retificadas com simples averbações antecedentes ao registro da escritura pública diretamente no Cartório de Registro de Imóveis. No entanto, havendo financiamento bancário ou liberação de FGTS, acaba sendo necessária a averbação prévia, sob pena de haver inconsistência na análise da Instituição Financeira da matrícula e respectivo bloqueio do processo de financiamento e/ou liberação do FGTS.

            No caso de imóveis em condomínio, é cobrada uma taxa com o objetivo de cobrir as despesas de infraestrutura dele, abrangendo a limpeza, a segurança, pagamento de pessoal etc.

            Por estar intimamente ligada a coisa (no caso o imóvel) as obrigações com as taxas condominiais são propter rem, funcionando da mesma forma que as dívidas com o IPTU, já tratadas anteriormente.

            Por expressa previsão no Código Civil[2], “O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios”.

            Sob a ótica do negócio imobiliário, independentemente da forma de concretização, é essencial deixar claro o ajuste entre os negociantes sobre a forma de pagamento deste tipo de pendência. Particularmente entendemos que este tipo de pendência deve ser resolvida antes da efetivação da transferência da propriedade.

            Até o presente momento nossas análises foram baseadas na comparação entre as informações da Matrícula imobiliária e dados do imóvel constantes na Municipalidade e dados de documentos públicos (RG, CPF, Certidão de Casamento etc.). A partir de agora nos ateremos aos principais gravames e restrições incidentes sobre um imóvel que podem afetar diretamente a análise de risco de um negócio imobiliário.

2.      Da Auditoria Documental do Imóvel – Aspectos Extrínsecos

            O artigo 1.225 do Código Civil estabelece quais são os direitos reais, ou seja, "são direitos reais: I - a propriedade; II - a superfície; III - as servidões; IV - o usufruto; V - o uso; VI - a habitação; VII - o direito do promitente comprador do imóvel; VIII - o penhor; IX - a hipoteca; X - a anticrese; XI - a concessão de uso especial para fins de moradia; XII - a concessão de direito real de uso". Por outro lado, temos os gravames que restringem a transferência do bem por convenção contratual ou por decisão judicial.

            Nos ateremos as principais restrições e gravames que afetam mais comumente a auditoria documental de um imóvel a saber, o usufruto, a cláusula de inalienabilidade, hipoteca, a alienação fiduciária e as indisponibilidades decretadas judicialmente.

            O usufruto é um dos direitos reais estabelecidos em lei[3] que limita o proprietário no direito de possuir, administrar e de obter os frutos (rendas) de um imóvel.

O seu pressuposto de constituição é o registro[4] na matrícula do imóvel de um instrumento de doação, testamento, compra e venda ou usucapião, podendo ser vitalício ou com prazo de validade determinado.

Uma vez constituído o usufruto, teremos um titular que detêm a nua-propriedade e outro titular que detêm o usufruto, ambos com registros distintos na matrícula imobiliária.

            Quando consta na matrícula a constituição de usufruto, a auditoria documental deve balizar o instrumento particular de compromisso de compra e venda e o instrumento translativo de propriedade (escritura pública ou instrumento particular com força de escritura pública), no intuito de impedir que apenas a nua-propriedade seja objeto de transferência.

            No caso de negócio imobiliário que se consolida com escritura pública de venda e compra, o nu-proprietário deve comparecer como vendedor e o usufrutuário, por sua vez, deve comparecer como cedente do direito de usufruto (art. 410, VI, do Código Civil), o que gera a consolidação da plena propriedade em nome de terceiro (o adquirente). Em não ocorrendo isso, o novo adquirente obtém uma propriedade restrita pelo usufruto de terceiros. Não há venda do usufruto (art. 1.393 do Código Civil), o que não é permitido legalmente, mas, a cessão do direito de usufruto que pode ocorrer de forma gratuita ou onerosa.

            No caso de negócio imobiliário que é consolidado com instrumento particular com força de escritura pública (financiamento ou liberação de recursos pelo FGTS) há a necessidade da renúncia anterior do usufrutuário, devidamente averbada na matrícula do imóvel, para que seja possível a efetivação do negócio imobiliário, uma vez que as instituições financeiras não aceitam realizar financiamentos imobiliários com a presença do usufruto.

            A cláusula de inalienabilidade nasce do poder do dono/proprietário de disposição sobre o bem[5] e, portanto, decorre da vontade exposta em atos de liberalidade (testamento ou doação), podendo ser temporária ou vitalícia, mas, sempre restrita a vida do herdeiro.

            A cláusula de inalienabilidade presente na matrícula de um imóvel impede a sua alienação, assim entendida a venda, doação, cessão, permuta etc. a terceiros.

            Para a viabilização da venda de um imóvel gravado com a cláusula de inalienabilidade é necessário o seu cancelamento, seja através de acordo para a retificação da escritura pública de doação que a instituiu, seja através do procedimento de sub-rogação, ou seja, a transferência da cláusula de um imóvel para outro.

            No caso de falecimento do herdeiro atingido pela cláusula de inalienabilidade, a averbação da sua certidão de óbito extingue automaticamente o gravame.

            A hipoteca, por sua vez, é uma garantia[6] acessória que fica vinculada ao imóvel, portanto, é uma garantia real.

            Através da hipoteca, o devedor oferece, como garantia a uma obrigação, um imóvel, que fica com um gravame em nome do credor. Este credor passa a ter o direito de sequela, ou seja, de perseguir o bem, em poder de quem quer que com ele esteja, até a satisfação da obrigação.

            Mesmo que alienado o imóvel, permanece válida a hipoteca, caso não seja devidamente baixada da sua matrícula imobiliária.

            Desta forma, fica muito claro o cuidado que se deve ter com o processo de venda de um imóvel hipotecado.

            Nos casos de negócio imobiliário que é consolidado por meio de escritura pública, deve ser exigido o termo de quitação da obrigação a que se vincula a hipoteca, sob pena do comprador adquirir um imóvel que está garantindo uma dívida de terceiros.

            No caso de negócios imobiliários consolidados por instrumento particular com força de escritura pública (financiamento e liberação de FGTS) a existência de hipoteca inviabiliza a análise jurídica do negócio pela instituição financiadora enquanto existente.

            A alienação fiduciária é um outro tipo de gravame comumente encontrado em matrículas de imóveis. Neste tipo de garantia, o credor, chamado de credor fiduciário, mantém a propriedade e a posse indireta do imóvel e cede ao devedor fiduciante a posse direta do imóvel, enquanto estiver em dia com os pagamentos, até a quitação total da dívida, momento em que, passa a ser proprietário do bem.

            No caso de negócios imobiliários que se consolidam com escrituras públicas o termo de quitação da obrigação originadora da alienação fiduciária é essencial para a viabilização do negócio.

            Tratando-se de negócios imobiliários que se consolidam com instrumento particular com força de escritura pública e financiamento é possível ser feita uma operação conjunta, pois, a instituição financeira que fará o financiamento da aquisição (interveniente quitante) pode quitar a obrigação com a instituição financeira que é credora fiduciária (interveniente anuente), transferindo o saldo financeiro do negócio ao vendedor (devedor fiduciário), transformando o comprador em devedor fiduciário em relação a nova instituição financeira (interveniente quitante).

            A penhora de bens é um instrumento jurídico do Juiz de Direito, com o objetivo de restringir o direito de plena propriedade do bem de um devedor para que ele seja utilizado para quitar a sua dívida.

            A penhora decorre de um título judicial ou título extrajudicial em execução judicial, com o objetivo de viabilizar o pagamento de uma dívida constituída e, também, juros, custas judiciais e honorários advocatícios.[7]

            A penhora em si não expropria o proprietário do imóvel, mas no curso do processo judicial pode vir a fazê-lo, seja pela adjudicação do bem ao credor, seja pela adjudicação do bem a terceiros, através de leilão judicial.

            A penhora é registrada[8] na matrícula do imóvel, onde constarão os dados do processo judicial, “formalizada a penhora, o exequente deverá providenciar a sua averbação junto ao registro do bem penhorado (desde que esteja submetido a registro). Isso se faz apresentando ao registro competente cópia do auto ou termo de penhora, não havendo necessidade de mandado judicial. Tal averbação produz efeito erga omnes, gerando, como consequência, uma presunção absoluta de conhecimento de terceiros. Qualquer alienação ou oneração do bem ocorrida após a averbação é reputada fraude à execução, na forma do art. 792, III”.[9]

            A venda de um imóvel penhorado configura fraude à execução, podendo tal venda ser desfeita por simples ato judicial.

            No caso de penhora registrada na matrícula imobiliária, a concretização de um negócio imobiliário, seja por meio de escritura pública, seja por meio de instrumento particular com força de escritura pública, está diretamente condicionado a quitação da dívida e a averbação desta na matrícula.

            Outro elemento essencial na análise de uma matrícula imobiliária é a presença de indisponibilidade de bens.

            A possibilidade de tornar um bem indisponível está prevista em diversas legislações, com destaque para os casos de execução trabalhista[10], execuções fiscais[11], na Recuperação Judicial e Falência[12]. No Código de Processo Civil vigente a indisponibilidade consta nos artigos 854 e seguintes[13] e no artigo 828

            No caso de imóveis, a indisponibilidade figura na Lei de Registros Públicos que prevê no artigo 247 que “Averbar-se-á, também, na matrícula, a declaração de indisponibilidade de bens, na forma prevista na Lei.”

            O Provimento 39/2014 da Corregedoria Nacional de Justiça criou e regulamenta a Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB), com o objetivo de centralizar as comunicações de indisponibilidades de bens imóveis, não individualizados, decretadas por autoridades judiciais e por autoridades administrativas com o objetivo de garantir maior eficácia destas decisões.

            O Artigo 2º do Provimento prevê que “A Central Nacional de Indisponibilidade terá por finalidade a recepção e divulgação, aos usuários do sistema, das ordens de indisponibilidade que atinjam patrimônio imobiliário indistinto, assim como direitos sobre imóveis indistintos, e a recepção de comunicações de levantamento das ordens de indisponibilidades nela cadastrada.”

            As ordens de indisponibilidades são inseridas no sistema pelos Juízes ou autoridades Administrativas e este comunica aos Registradores Imobiliários. O registro de indisponibilidade é efetivado pelo Cartório de Registro de Imóveis, utilizando o CPF (Cadastro de Pessoa Física) ou CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica).

            Caso conste no Cartório de Registro de Imóveis bens vinculados ao CPF/CPNJ indicado, será realizada a averbação da indisponibilidade na matrícula ou transcrição do imóvel, de modo que o registrador deverá inserir no Cadastro as informações relativas ao bem, seja a matrícula, transcrição ou outros bens (quotas, direitos etc.).

            A indisponibilidade de bens provoca a nulidade dos atos jurídicos feitos após a sua decretação, não valendo qualquer negócio imobiliário enquanto existir esta restrição.

            “A indisponibilidade de bens, com averbação na matrícula de Cartório Imobiliário, é um instituto jurídico que visa impedir que o executado, titular da propriedade, pratique atos de disposição e oneração, ou seja, que venha a dilapidar suas posses, prejudicando, dificultando ou impossibilitando, com atos de ilícito desvio de seu patrimônio, a própria liquidação de sua responsabilidade civil, gerando, com esse injusto comportamento, prejuízos gravíssimos a uma vasta coletividade de credores. Contudo, nada impede que o bem declarado indisponível seja alvo de penhora ou de outro tipo de contrição judicial.[14]

            O Artigo 14 do Provimento no 39 de 25/07/2014 estabelece a obrigatoriedade dos registradores de imóveis e dos tabeliães de notas de consultar a Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB) antes da prática de qualquer ato notarial e registral que tenha por objeto bens imóveis ou direitos a ele relativos, exceção feita a lavratura de testamento.

            No caso de constar na matrícula imobiliária averbação de indisponibilidade do imóvel, não é possível a obtenção de financiamento imobiliário ou liberação de FGTS, no entanto, a existência de indisponibilidade não impede a lavratura de escritura pública de venda e compra, mas, impede seu registro na matrícula do imóvel, enquanto estiver ativa a restrição.

            Particularmente entendemos que o uso da indisponibilidade de bens não deveria ser utilizado tão indiscriminadamente como vem ocorrendo. Ela é uma medida extrema que deve ocorrer depois de esgotadas todas as tentativas de localização de bens do executado à satisfação do débito, uma vez que a medida atinge indiscriminadamente todo o seu patrimônio.

            Por fim, devemos tecer algumas considerações sobre a análise da cadeia dominial.

            A cadeia dominial é a sequência de proprietários que constam na matrícula imobiliária (ou transcrição) desde a titulação original (primeiro proprietário) até o último dono e atual proprietário.

            Este processo de rastreamento tem como objetivo encontrar falhas, vícios e fraudes que porventura tenham ocorrido.

            O estudo da cadeia dominial comprova a regularidade do imóvel, tendo como base as informações que constam na própria matrícula do imóvel. O registro de um título aquisitivo na matrícula de um imóvel o torna público e, presumidamente, autêntico até prova em contrário.

            A Lei 13.097 de 19 de janeiro de 2.015 trouxe uma importante alteração ao sistema de registro público de imóveis, incorporando definitivamente o princípio da concentração.

Na verdade, este princípio já constava na Lei de Registros Públicos nos artigos 167 e 246, no entanto, não contava com tanta certeza como conta agora com a nova previsão legal. Inúmeras discussões judiciais e doutrinárias ocorreram, exatamente pela dúvida sobre ser ou não taxativo o dispositivo legal do artigo 167 da Lei de Registros Públicos.

            Até a edição da Lei 13.097/15 cabia aos compradores fazer a comprovação de sua boa-fé na aquisição imobiliária, para não ter sua operação enquadrada com fraude a execução ou fraude a credor no caso de pendências judiciais e financeiras dos vendedores. No entanto está logica mudou.

            No Parágrafo único do artigo 54 da Lei 13.097/15 fica estabelecido que “Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.”

            Assim, temos duas hipóteses de exceção à regra da concentração dos atos na matrícula imobiliária.

Em primeiro lugar, as hipóteses dos “atos ineficazes”, sejam objetivos ou subjetivos, na forma da lei de falências e de recuperação extrajudicial (arts. 129 e 130 da Lei 11.011/2005).

Em segundo lugar, as hipóteses de aquisição/extinção de propriedade que independam de registro de título de imóvel, ou seja, os atos causa mortis, a usucapião, as formações de ilhas, avulsão e aluvião, as oponibilidades autônomas advindas do direito de família, como o usufruto legal, por exemplo e a inscrição na dívida ativa, nos termos do artigo 185-A do Código Tributário Nacional[15].

            O princípio da concentração traz em si a ideia de centralização na matrícula imobiliária de toda e qualquer informação relevante a um imóvel, de tal forma que, qualquer situação que não conste na matrícula não pode ser oposta a terceiros, salvaguardadas as hipóteses anteriormente citadas.

Conclusão

            A aquisição de um imóvel é um sonho de maior parte da população brasileira, no entanto, há um conjunto de riscos inerentes a este tipo de aquisição. A auditoria documental da matrícula imobiliária tem como objetivo mitigar parte destes riscos, apresentando opções para a viabilização segura do negócio imobiliário.

            A nossa vivência prática de mais de 20 anos de mercado imobiliário, assessorando imobiliárias, franquias imobiliárias, compradores e vendedores, demonstra que a auditoria documental da matrícula imobiliária não deve estar limitada apenas a análise dos riscos para a segurança jurídica do negócio pretendido, mas, também, deve abranger qualquer tipo de inconsistência documental que possa vir a impactar o próprio andamento do negócio, apesar de não representar um risco jurídico inviabilizador ao negócio em si.

            Ante ao exposto, há que se reconhecer que o conhecimento dos requisitos, sejam jurídicos sejam administrativos, pela sua complexidade, comumente faltam aos envolvidos no processo de aquisição e venda de imóveis. Em consequência, a assistência por profissional especializado para levantar, analisar e assessorar os interessados, será a melhor forma de levar as negociações a bom termo, proporcionando, entre outras, a total segurança para ambas as partes.

 

Bibliografia

·         https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-civil/a-funcao-social-da-propriedade-urbana-principio-e-efetividade-a-luz-da-constituicao-federal-de-1988/

·         http://www.secovipr.com.br/compra-e-venda-com-usufruto-na-matricula-do-imovel-104-3560.shtml;

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·         https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/531/r144-04.PDF?sequence=4&isAllowed=y;

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·         ALVARES, Luís Ramon. O que você precisa saber sobre o Cartório de Notas. — 1. ed. — São José dos Campos, SP: Editora Crono, 2016;

·         SALES, Fernando Augusto de Vita Borges de. Novo CPC comentado artigo por artigo, - 1. Ed - São Paulo, SP: Editora Rideel, 2016;

·         https://www.projuris.com.br/penhora-de-bens-no-novo-cpc;

·         https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-processual-civil/inovacoes-trazidas-pela-lei-13-105-2015-na-fraude-a-execucao/;

·         https://sti.tjms.jus.br/confluence/pages/viewpage.action?pageId=156187354;

 



[1] [AI 491.420 AgR, rel. min. Cezar Peluso, j. 21-2-2006, 1ª T, DJ de 24-3-2006. RE 795.804 AgR, rel. min. Gilmar Mendes, j. 29-4-2014, 2ª T, DJE de 16-5-2014

[2] Art; 1.345, Código Civil;

[3] Art. 1.225, IV, Código Civil;

[4] Artigo 167, inciso I, item 7, da Lei Federal 6.015/73;

[5] Artigo 1228, Caput, Código Civil;

[6] Artigos 1.473 a 1.505 do Código Civil;

[7] Artigo 831 do Código de Processo Civil “A penhora deverá recair sobre tantos bens quantos bastem para o pagamento do principal atualizado, dos juros, das custas e dos honorários advocatícios”.

[8] Artigo 167, I, 5 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973);

[9] SALES, Fernando Augusto de Vita Borges de. Novo CPC comentado artigo por artigo, p. 575.

[10] Art. 889 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT);

[11] Art. 185-A do Código Tributário Nacional (CTN);

[12] Art 82 da Lei 11.101/05;

[13] Da Penhora de Dinheiro em Depósito ou em Aplicação Financeira

[14] Processo TRT/SP nº 0002610-33.2011.5.02.0079 16ª Turma;

[15] “Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa”;


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